O espectro ideológico tem dois extre­mos para o tema.

De um lado, está a crença de que a empresa pública só deve ser utilizada quando os outros instrumentos fracassarem.

Essa orientação privile­gia aquilo que se conhece como o princí­pio de subsidiariedade: só se admite a intervenção direta do Estado quando todas as medidas indiretas – política fiscal, creditícia, incentivos e subsídio, etc – se mostraram inúteis porque a iniciativa pri­vada não reage.

Mesmo no caso dos monopólios naturais, essa postura inclina-se em favor da concessão administrativa a uma empresa privada, impondo-lhe naturalmente limitações à possibilidade de abusar do poder na sua condição de monopolista.

O fato de relegar para segun­do plano a empresa pública, como instrumento de política econômica, explica-se, segundo os partidários da subsidiarieda­de, pela maior eficiência que a empresa privada mostraria.

No outro extremo do espectro encontra-se a convicção de que o merca­do e a iniciativa privada não realizam o interesse social.

As medidas indiretas não servem porque agem sobre uma iniciati­va privada que às vezes é incompatível com o objetivo geral confiado ao Esta­do.

A empresa pública é, então, o único caminho para conseguir a realização do interesse social: o Estado tem de assegu­rar a gestão direta, mediante a criação ou a nacionalização das empresas pertencentes às atividades-chaves, as que têm uma posição dominante ou estratégica no processo de alocação de recursos.

Na plataforma eleitoral apresentada num país europeu, há alguns anos, uma coalização claramente de esquerda propugnava a nacionalização das seguintes atividades estratégicas: o setor bancário e o financeiro em seu conjunto; as empresas que controlam os ramos e setores essenciais para o desenvolvimento da economia do país; os centros de acumulação capitalista que dominam certas produções nas quais a competição se reduz a pou­cas empresas gigantes; as sociedades que vivem ou se nutrem de fundos públicos (contratos com o Estado, subvenções, crédito privilegiado ou qualquer outra via) e as empresas que respondem diretamente a funções coletivas, que têm o caráter de serviço público ou atendem necessidades sociais fundamentais.

Como se observa, o espírito desse programa reflete uma clara convicção das vantagens da empresa pública e um escasso temor das eventuais ineficiências que sua atuação pode comportar, tão apregoadas pelos que se situam no polo oposto.

A explicação marxista

De um ponto de vista marxista, numa sociedade burguesa o Estado é apenas o prolongamento da classe dominante, formada pelos capitalistas.

Portanto, a atuação do Estado está destinada a defender os interesses da burguesia.

Lênin dizia, literalmente, que “o Estado é um organismo de domínio de classe, de opressão de uma classe por outra: a criação de uma ordem legaliza e consolida esta opressão, ao moderar os conflitos de classe”.

A conclusão lógica é que, em uma economia capitalista, a empresa pública é um instrumento a mais do capitalismo, embora na aparência não seja do agrado dos defensores mais fervorosos desse sistema.

Porque, segundo o pensamento marxista, com sua utilização, consciente ou inconsciente, se lutaria contra a tendência ao desaparecimento do próprio capitalismo, ou seja, a tendência ao decréscimo da taxa de lucro.

Com a empresa pública, com a apropriação parcial pelo Estado dos meios de produção, prolongar-se-ia a agonia do capitalismo provocada por seu próprio êxito, isto é, pelo desenvolvimento econômico que provoca.

É difícil resumir em poucas palavras o raciocínio marxista.

De forma muito esquemática, esse raciocínio seria o seguinte.

O motor do capitalismo é o lucro.

Os empresários investem, produzem, adquirem e utilizam recursos porque com esta atuação esperam conseguir uma taxa aceitável de ganho.

O lucro é a manifestação da mais-valia que nasce da exploração da força de trabalho em um regime capitalista: o proletariado produz mais do que recebe em forma de salário em troca de seu esforço.

A diferença é utilizada pelos capitalistas seja para alcançar privilégios de toda espécie, seja para incrementar os meios de produção que possuem, tendo sempre em vista um maior lucro futuro.

À medida, porém, que os meios de produção material se desenvolvem, a mais-valia que se pode conseguir torna­-se mais reduzida, em termos seletivos, e portanto, também a proporção que o lucro distribuível representa em proporção ao capital investido.

Essa tendência, afirma-se, é inexorável e será tanto mais rápida quanto maior for a acumulação conseguida em forma de meios de produ­ção.

Por esse caminho, chegaria o momento em que a taxa de lucro seria reduzidíssima e deixaria de atuar como incen­tivo aos investimentos e à produção dos empresários privados.

O capitalismo ve­ria então o seu fim: iria de encontro à barreira erigida por seu próprio êxito.

O capitalismo procura lutar contra esta evolução.

Segundo Marx, é possível retardar a ruptura, mas não evitá-la.

Nessa luta é preciso distinguir duas fases.

A primeira corresponde ao denominado capitalismo monopolista: nela, a taxa de lucro que a mais-valia gera não é distribuí­da de maneira uniforme; a posição privilegiada de alguns monopólios, frente à aguda competição que conhecem os se­tores integrados por múltiplas e minúsculas unidades produtivas, lhes permite açambarcar mais ganho do que aquele que em princípio lhes corresponderia, segundo o capital que comprometeram.

É evidente, entretanto, que só conseguem isso reduzindo a taxa auferida pelos pequenos empresários que atuam em seto­res fortemente competitivos.

As diferentes relações de força levam, pois, a uma injusta distribuição da mais-valia.

Mas mesmo assim o progresso se impõe e rom­pe as barreiras: chega um ponto em que o capital total é muito pequeno.

Nasce, então, uma nova defesa que consiste na utilização do Estado.

Se este assume algumas atividades produtivas e renuncia seguidamente à parte de mais-valia que lhe corresponde pelo capital empregado, automaticamente se eleva, pela própria magnitude do bolo, a taxa de ganho que os empresários privados conse­guem.

Metaforicamente pode-se dizer que o bolo continua reduzido, mas como alguns convidados renunciam à parte que lhes cabe, aumenta o pedaço destinado aos que ainda insistem em comê-lo.

Esta segunda fase é a do capitalismo monopolista do Estado.

E em seu transcurso tem lugar o que, em terminologia marxista, se conhece pela desvalorização do capi­tal que está em mãos públicas ou estatais.

Tal desvalorização, essa renúncia à mais-valia que segundo a norma do mercado corresponderia aos meios de produ­ção em mãos públicas, manifesta-se de múltiplas formas.

Uma é a política de preços: se as tarifas elétricas são mais baixas para os usos industriais do que para os domésticos, os custos das empresas privadas se reduzirão e, consequentemente, se incrementará em igual medida seu lucro.

Segundo essa explicação os partidos políticos de ideologia marxista deveriam opor-se ao surgimento de empresas públicas, na medida em que isso significa protelar o fim do sistema econômico que rejeitam.

Contudo, não é esta a postura observada, visto que favorecem e defendem nacionalizações e intervenções dire­tas do Estado.

E assim explicam o paradoxo: quanto maior for a proporção dos meios de produção em mãos públicas, mais fácil será o salto para o socialismo no sentido mais estrito.

De toda nacionalização resultam efeitos contraditórios: freia o decréscimo da taxa de ganho dos capitais privados, mas ao mesmo tempo facilita a transição para um novo Estado.

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Fonte: Antonio Serra Ramoneda – Doutor em Ciências Econômicas e reitor da Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha.