Dissemos antes que se o modelo teórico é o que exprime institucionalmente uma ideia, o modelo prático é o que encarna histórica e realmente esta ideia.
Por isso, acabamos a parte anterior com a conclusão de que se a ideia de cogerenciamento foi pensada na Alemanha, sendo também a Alemanha o lugar em que se arraigou como modelo histórico.
O modelo prático de gestão é, pois, o modelo alemão.
Um modelo que se desenvolveu logicamente de modo desigual em dois níveis:
- O da empresa (Ünternehmen).
- O do centro de trabalho ou Betrieb.
Um modelo que, implantado no nível da empresa – Ünternehmen num princípio apenas no setor da siderurgia (e depois ampliado para a mineração) teve em seguida uma evolução, cuja tendência consistiu na aplicação do arquétipo da cogestão minero-siderúrgica ao restante dos setores econômicos.
O modelo prático da cogerência da empresa (Ünternehmen) no setor mineiro-siderúrgico
Pela política aliada que explicamos acima, onde se aplicou primeiro esse modelo foi no setor siderúrgico.
Ali começou a reconstrução industrial alemã.
Ali começou também, coerentemente, a cogestão alemã.
Depois se chamou qualificada (por oposição à cogestão simples) e que em termos mais técnicos e mais reais seria melhor qualificada de estritamente paritária.
Sua estrutura (de acordo com os gráficos utilizados até agora) poderia visualizar-se no “Modelo de cogerência qualificada“.
Três tipos de observação explicam suficientemente o gráfico:
- Ao contrário do que foi afirmado no gráfico “Os três órgãos da empresa“, aqui não aparece junta geral.
Por isso, no extremo esquerdo do quadro (o da pluralidade política dos sujeitos, à qual se referem também dois dos gráficos anteriores) o que se dá são sujeitos políticos prévios (pré-sujeitos ou sujeitos pré-constituídos, foi como os designamos em outro lugar), plurais por seus poderes e interesses.
Com um sentido pragmático, o direito alemão identificou três: os representantes dos poderes/interesses dos acionistas; ou dos poderes/interesses da sociedade em geral; e os representantes dos poderes/interesses dos sindicatos/trabalhadores.
- Desse conjunto de sujeitos políticos pré-constituídos, sai diretamente, e em sentido marcado pelas flechas, o órgão político da empresa, o Aufsichtsrat (na realidade, conselho de vigilância ou de controle da decisão suprema, ou da decisão a longo ou médio prazos).
Por motivos pragmáticos, esse órgão não é de nova criação, mas a adaptação às novas condições do órgão técnico de representação previsto na lei alemã de sociedades anônimas (a do dualismo de órgãos, frente ao monismo das sociedades regidas pelos códigos napoleônicos).
A adaptação consiste em fazer com que seus componentes não sejam exclusivamente representantes dos acionistas (tal como se pensou na lei de sociedades anônimas) mas representantes paritariamente do capital (acionistas) e do trabalho (sindicatos/trabalhadores).
Acrescenta-se então uma representação desigual de um terceiro interesse, o da sociedade em geral, inserido no chamado membro número onze, que é cooptado pelos outros dois grupos previamente constituídos, e do qual se exige neutralidade, isto é, não ter interesses diretos ou indiretos nem de capital nem de trabalho ou sindical na empresa.
Na realidade, o grupo dos neutros é mais amplo e está constituído por três (na fórmula de um Aufsichtsrat de onze), dos quais se exigem as mesmas condições de neutralidade que o membro número onze.
A diferença está em que para a eleição destes outros dois membros não se utiliza a forma de cooptação (reservada ao presidente, o número onze), mas a da eleição de um pelos representantes do capital (acionistas) e outro pelos do trabalho (trabalhadores/sindicatos).
As preferências de aproximação, que é lícito presumir, devem ocorrer nessas eleições, ficando assim compensadas e articulando ainda melhor dos interesses da empresa.
Isso se acha expresso nas chaves sobrepostas que aparecem no gráfico.
Numa consideração à margem, o Aufsichtsrat pode ter mais de onze membros em função de uma série de condições concretas.
Mas onze é número padrão – daí a denominação popular do membro número onze.
Em todo caso, e para dar saída a esse tipo privilegiado de homem, o número total de membros do Aufsichtsrat sempre é ímpar.
Com isso, consegue-se o princípio prático de paridade ímpar.
Duas últimas observações.
Primeira: a figura do membro número onze é a que faz ímpar a paridade, isto é, a que a torna operativa, impedindo o impasse da não-decisão.
Mas, historicamente, nasceu na primeira reestruturação industrial alemã, posta em marcha pelos aliados, na figura do presidente do holding, que era ao mesmo tempo presidente de cada uma das sociedades que o constituíam.
Somente depois se pôde localizar aquela outra vantagem.
Segunda observação: a representação dos acionistas no Aufsichtsrat (4 + 1, segundo as matizações acima feitas) não apresenta especial dificuldade na hora de se materializar em membros concretos.
Mas apresenta dificuldade, em compensação, a representação do trabalho (4 + 1, também).
A dificuldade está em saber se essa representação deveria ser determinada pela coletividade operária, pelos trabalhadores dá empresa, ou pelos sindicatos, representantes naturais do movimento operário.
Razões tanto históricas como ideológicas constituem o problema.
Mas a solução alemã foi uma solução pragmática, com certa primazia sindical.
As linhas pontilhadas do quadro significam isso.
- Finalmente, do Aufsichtsrat sai o Vorstand (diretório) responsável funcional da empresa.
Segundo a lei alemã de sociedades, o Vorstand é um órgão coletivo de gestão composto de três membros, funcionalmente diferenciados (diretor financeiro, diretor comercial e diretor de operações) mas não responsavelmente separados.
Os três são, solidariamente, os representantes da empresa.
Dado seu modo de designação (que se vê na flecha contínua) não seria necessário mecanismo especial algum de designação.
Mas de fato foi necessário com relação ao diretor de operações (daí a flecha pontilhada).
Do lado operário, pensou-se que o diretor de operações, responsável funcional da política social da empresa, deveria ser alguém próximo deles.
Ao mesmo tempo, e por motivos diferentes e até opostos, do outro lado pensou-se também que, para evitar as políticas sociais de fuite en avant, o responsável por ela deveria ser uma pessoa comprometida com o trabalho.
A coincidência de conclusões com argumentos tão diferentes favoreceu a solução pragmática.
O diretor de operações, além da maioria de votos do Ausfsichtsrat, deveria também ter a maioria dos votos do grupo operário deste.
De fato, a fórmula funcionou na prática.
A extensão do modelo a outros setores
Toda a história da cogestão alemã da segunda pós-guerra é a história da tentativa do SPD (Partido Socialista) e da DGB (Confederação Sindical Alemã) de levar o modelo paritário da mineração e da siderurgia ao restante dos setores econômicos.
A primeira tentativa é a lei de 1952, que acabou fracassando.
A democracia cristã governante, sob a direção de Adenauer, não aceitou a paridade.
Uma greve desencadeada pelos sindicatos para impô-la foi enfrentada por Adenauer, velha raposa política, que soube utilizar para tempos de pós-nazismo o argumento de que uma greve não podia intervir na soberania do povo expressa na soberania do Parlamento.
A adaptação, foi, portanto, a representada no gráfico “Lei alemã de cogerência de 1952“.
Houve uma longa segunda tentativa que, entre outras coisas, produziu o Informe Biedenkopf quando, com o SPD no poder, chegou a hora de realizar o projeto político acalentado.
A necessária colaboração dos liberais (parte da coalização governante) bloqueou-a de novo.
Que fazer então?
Como tantas vezes, um estudo.
Este foi o Informe Biedekopf, um admirável estudo que avalia muito positivamente a experiência de vinte anos na cogestão paritária na siderurgia e na mineração.
Para o Informe Biedenkopf, a instituição funcionou tão bem (não é possível distinguir no Aufsichtsrat, pela mera observação daquilo que fazem e dizem, os representantes do capital e do trabalho) que seria o caso de pôr o governo em guarda para não matar a especificidade, a identidade dos sindicatos e do movimento operário.
A função sindical não pode limitar-se à sua função managerial do Aufsichtsrat.
Deve haver lugar para o protesto, para que não se manifeste de maneira imprevisível e selvagem.
Fruto desse informe e da política que o tornou possível, saiu – em 1976 – uma nova lei de cogestão para o resto dos setores econômicos (não minero-siderúrgico), que em teoria substituiria a de 1952, embora não de todo.
Ao se aplicar a lei de 1976 às empresas de mais de 2 000 trabalhadores, aquela lei continua hoje vigente para os setores econômicos não minero-siderúrgicos com um número de pessoal entre 500 e 2 000.
Suas linhas mestras podem ver-se no gráfico “Lei alemã de cogerência de 1976“.
Como se vê, se estabelece o princípio da paridade.
Mas neste caso não ímpar, e sim par (não há, digamos, o membro número onze).
Daí a necessária desigualdade das partes, o que comporta a possibilidade de nomear o presidente dotado de voto qualificado.
Em todo caso, este é nomeado pela representação dos acionistas, o que inclina a paridade em seu favor.
De fato, esta foi a primeira objeção sindical ao modelo da lei de 1976.
As outras duas de certo peso seriam:
- Há uma primazia do coletivo de trabalhadores da empresa. Em certos casos nem sequer haveria um representante sindical.
- Entre os representantes dos trabalhadores há, necessariamente, alguma representação dos altos executivos (leitende Angestellté).
Os sindicatos pensam que estes representam melhor o capital do que o trabalho.
De todo modo, é certamente possível dizer que a lei de 1976 aproxima a realidade mais do arquétipo de cogerência da mineração e da siderurgia.
A cogestão no Betrieb
Além de levar-se ao Ünternehmen, a cogestão é levada também ao Betrieb.
Isto se dizia na lei de 1952 e também naquela que a substituiu (parcialmente, no que se refere ao Betrieb) em 1972.
Ali se inscrevem, como já dissemos, todo o conjunto de direitos de informação, proposta, consulta, etc, que, articulados na cogestão estritamente dita, têm realmente um conteúdo concreto de codeterminação.
O instrumento privilegiado disto é o Betriebsrat, criado pela lei de 1952 e melhorado na de 1972.
É o equivalente dos comitês de empresa.
Mas se estruturalmente só é constituído por representantes dos trabalhadores, funcionalmente é para colaborar com o empresário (Arbeitgebef) para o bem do pessoal e do Betrieb ou da empresa.
Os conflitos de trabalho (Arbeitskámpfe) são competência sindical, e se decidem fora do Betriebsrat ou comitê de empresa.
Uma segunda e última observação.
A lei de 1972 sublinhou os direitos individuais do trabalhador enquanto membro (cidadão) da empresa: por exemplo, o direito de acesso aos dados que sobre sua pessoa a empresa armazenou, e a possível verificação ou complementação destes às instâncias do trabalhador, que sempre pode ir acompanhado e assistido de um representante sindical ou de um membro do Betriebsrat ou comitê de empresa.
Com isso, o caráter de cidadania da empresa se amplia para zonas da vida diária nas quais o resto dos direitos do trabalho clássico ainda não chegaram.
EPÍLOGO
Já dissemos antes que a cogestão não é a democracia econômica, mas apenas um caminho – mais um – em sua direção.
A cogestão alemã, também.
Mas seria vão negar sua força de atração com o modelo.
Muitos países se orientam para ele.
Bloch-Lainé ou o Informe Sudreau são duas referências, distantes no tempo, dessa história na França, onde já se começa encarar o Aufsichtsrat como substitutivo do Conselho de Administração napoleônico.
Na Itália, pelo menos teoricamente, os sindicatos recolocaram sua postura de aceitação de uma certa cogestão (prevista na Constituição) diante da experiência alemã e do desafio comunitário.
A Comunidade Econômica Europeia se orienta para um modelo de empresa europeia do qual a cogestão (na modalidade mitigada do 2/3 e 1/3 da lei alemã de 1952) faz parte essencial.
Finalmente, nos países que poderíamos chamar de cultura germânica não é difícil encontrar, em diferentes níveis (incluídos os supra empresariais) e com técnicas diferentes, a mesma filosofia da cogestão alemã.
Mas, por isso mesmo, é importante sublinhar que outros países querem chegar a esse mesmo ideal por outras vias, ou não querem chegar, simplesmente em função de outros projetos.
Dentre os que não querem chegar seria fácil encontrar modelos de tipo latino.
Já nos referimos a isto – e a seu porquê – na introdução.
Entre os que chegam por outra via seria necessário situar antes de tudo os anglo-saxões.
A outra via significa – apontamos isto também na introdução – outra cultura, neste caso a cultura da negociação, do equilíbrio dos poderes (a teoria galbraithiana do counterveiling power) frente à institucionalização dos poderes de origem.
A fórmula anglo-saxã pode ser visualizada no gráfico “Cultura da negociação”.
O conceito germânico de cogerência não é único. Os países anglo-saxões utilizam outros métodos (ver o gráfico acima) para conseguir a plena participação dos trabalhadores nas tarefas diretivas. Esta via significa outra cultura, a de negociação. Na outra imagem, uma cervejaria da Baviera. O auge econômico que a cogestão em parte promoveu, tornou o povo alemão o mais rico da Europa.
Como se vê, também aí entram os três poderes/interesses identificados na cogestão alemã.
Mas o da sociedade entraria apenas em última instância (quando eventualmente se revelar necessária) e antes de tudo, na forma de pressão diante da opinião pública.
O caso dos Estados Unidos é especialmente significativo.
Diretamente (parte superior do gráfico), os que entram são os poderes clássicos mas funcionalmente já configurados.
Uma análise comparada (cross-cultural, diriam os anglo-saxões) explicaria seu porquê, assim como tornaria razoável a originalidade do direito anglo-saxão do trabalho com cláusulas do tipo das closed shop ou union shop, impensáveis no direito continental do trabalho.
A possibilidade de que essas diferentes histórias – a alemã e a anglo-saxã – se cruzem, dependerá do futuro da sociedade industrial e da cultura que ela segregar.
Leia mais em:
Entenda os problemas históricos
Entenda o modelo teórico da cogerência
Fonte: Antonio Marzal, é doutor em Direito e licenciado em Direito Comparado, Filosofia, Letras e Teologia. É também professor ordinário de ESADE e professor titular da Universidade Autônoma de Barcelona.